Entrevista a João de Mello Alvim

O desenhador de sonhos
 


João de Mello Alvim é uma figura de referência no teatro e artes performativas em Sintra desde os anos oitenta. Encenador, divulgador, ativista cívico, fomos ouvi-lo no momento em que pela quarta vez se realiza em Sintra o Periferias, festival que fundou e agora vê crescer.


 

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O João de Mello Alvim (JMA) está há muitos anos ligado ao teatro que se faz em Sintra, e é conhecido sobretudo como encenador do Chão de Oliva. Como surgiu o gosto pelo teatro, e o que destaca desse percurso?

JMA – Estou ligado ao teatro, e à intervenção cultural em Sintra desde 1980, quando comecei a dinamizar um grupo de expressão dramática na Escola Secundária de S.ta Maria (Portela de Sintra), integrado num grupo maior (o GAC) dedicado às artes, ao jornalismo, à rádio, etc. Isto no tempo em que os professores ainda tinham tempo para o ser, não estavam esmagados por reuniões, fichas, a (imposta) síndrome do sucesso, as estatísticas, etc. O gosto surgiu – eu nem gostava de teatro – a partir de um convite, no meu último ano de curso na Escola de Belas Artes do Porto, para fazer os figurinos e o cenário de uma peça para o Teatro Universitário do Porto, que acabou por ser a minha tese de licenciatura, perante um Júri composto pelos mestres Júlio Resende e José Rodrigues… O que destaco neste percurso é o ter de andar sempre a pedir - às vezes, a umas nulidades que, à força de jogadas de bastidores, ocupam lugares de decisão e pensam que o cartão partidário lhes acende automaticamente uma auréola de sabedoria - para que este trabalho de serviço público que a associação a que pertenço, o Chão de Oliva (CO) continue.

Como vê a relação do público com o teatro hoje e nomeadamente como vê a apetência do público local pelo fenómeno teatral?

JMA – Estamos numa época de grande oferta “cultural” a maioria da qual, pronta a mastigar, mesmo a engolir sem mastigar. Basta ver as programações das manhãs televisas e em outros horários nobres, ou, nas iniciativas da maioria das autarquias, o pé a fugir para o evento em que interessa é a quantidade de espectadores… A cultura que defendo, e dentro desta o teatro, não corre nessa pista, pretende ser um contributo para desenvolver sensibilidades e ajudar a pensar. E quem pensa age pensadamente. Daí que, e praticamente desde que existe, não seja olhado com “bons olhos” pelo Poder, seja político, seja nas suas ramificações pela comunicação social – e aqui refiro-me à matéria noticiosa e à divulgação, cada vez mais reduzida. Mesmo assim o teatro tem resistido, e Sintra, com a eclosão de vários grupos e criadores, apresentando uma oferta variada e regular, solidificou e aumentou os públicos. Um exemplo de resistência cultural que devia ser estudado.

Que peças mais gostou de encenar e quais as que ainda gostaria de levar à cena, como encenador e como actor?

JMA – Eu enceno a maioria das vezes porque não há dinheiro para chamar outros encenadores…não me considero encenador. Considero-me professor, e nessa perspectiva sou, juntamente com as equipas onde me integro, um dinamizador da actividade cultural e um “desenhador de programações”, tendo o teatro como eixo central e as palavras de Almeida Garrett como uma das referências: “O teatro é um grande meio de civilização, mas não prospera onde a não há”.

O Chão de Oliva tem desde 1999 um espaço na Casa de Teatro de Sintra. Considera que esse local continua a responder às exigências actuais? Que planos têm para o dinamizar?

JMA – A passagem do CO para a Casa de Teatro atual, demorou 12 anos. Na altura que avançámos com a ideia – por sugestão do sr. José Alfredo Azevedo -, ainda não havia nenhuma estrutura profissional no seio da associação, nem em Sintra. Aquando da instalação no edifício da Veiga da Cunha – graças ao empenho da então Presidente da CMS, Edite Estrela-, alertámos para a exiguidade do mesmo, pois limitava o desenvolvimento das atividades que entretanto tínhamos em marcha, essencialmente as dos dois grupos (entretanto) profissionalizados, a Companhia de Teatro de Sintra (o primeiro grupo de teatro profissional a ser criado em Sintra) e o Fio d´Azeite – Grupo de Marionetas. Na altura não fomos compreendidos, ou não nos quiseram compreender. Como desistir é um verbo que temos dificuldade de conjugar, continuamos o nosso trabalho de sensibilização para a necessidade de ampliação do espaço, com “a anexação” do edifício confinante, o Chalet do Torreão. Finalmente em 2009 (!) este edifício foi comprado pela autarquia, por proposta do vereador Luís Patrício, então com o Pelouro da Cultura, ficando em ata que o mesmo seria para a ampliação da Casa de Teatro. Concretizava-se assim o primeiro ponto, dos três, elencados no faseamento que propúnhamos e continuamos a propor: compra; recuperação do interior e da cobertura (agora necessária mais do que nunca, dado o estado de avançada degradação que se encontra o edifício, um mau exemplo dado pela autarquia quanto ao estado do seu património edificado); construção do novo equipamento. Daí para cá pouco se avançou. Por princípio, acreditamos no cumprimento das promessas, e o partido que venceu as últimas eleições autárquicas tem no seu programa, explicitamente, como um dos objetivos na área cultural, a ampliação da Casa de Teatro de Sintra. Compreendemos que o primeiro ano foi de (re)conhecimento dos cantos da casa, mas estamos certos que neste ano de 2015 será possível estabelecer com o Executivo, através de um pequeno grupo de trabalho (Departamento de Obras Municipais/CO) um calendário para a execução da restantes duas fases previstas, como atrás refiro: limpeza e adaptação do Chalé para sala de ensaios, actividades de formação, e residências artísticas; e, a terceira, e última, que será o início da construção da nova sala, ficando assim a Casa de Teatro com duas salas. Este equipamento permitirá ter em simultâneo dois espetáculos em cartaz (do CO ou, como é nosso costume, para acolhimentos de outros grupos), e ainda uma sala de ensaios, um armazém, uma oficina, espaço para arquivo (já o há com quase trinta anos), centro de documentação sobre as artes do espectáculo, foyer acolhedor, pequeno bar/esplanada para lazer e apresentação de pequenos espetáculos, e uma segunda entrada pela Rua Tomás de Barros Queiroz (atrás do Mercado da Estefânea). Essencialmente, adequar o espaço ao historial do CO, à sua capacidade organizativa e de programação, e potenciar, em articulação com os outros espaços dedicados às artes, uma oferta permanente na Estefânea criando um pólo ativo de oferta artística – e porque chamar-se Quarteirão das Artes? Tenho convicções mas não tenho preconceitos político/partidários – de maneira a fomentar um eixo dinâmico com ligação à oferta monumental e paisagística da Vila, que chame os sintrenses e os visitantes para esta zona, contribuindo deste modo para a vivificação da vida social e económica da mesma.

Em Março vamos ter de novo o Periferias. Como vê o Festival hoje, e que trás ele de novo e diferente ao panorama local?

JMA – O Periferias é um exemplo de que não é preciso invocar eventos europeus – em países com uma longa tradição cultural e orçamentos adequados -, para se afirmar em Sintra um ideia original e com ressonância a nível internacional. Por outro lado, e ao contrário do que acontece, por exemplo no vizinho município de Cascais, o Periferias não é um evento tipo fast-food, comprado a agentes “de fora”, já que nasceu da iniciativa de uma estrutura cultural radicada em Sintra. Haja vontade política e ponha-se em prática o apregoado durante a campanha eleitoral, quando o discurso, que convenceu muitos eleitores, nomeadamente os ligados à atividade cultural, era que a Câmara devia ter como principal função estimular e proporcionar aos agentes culturais os meios para concretizarem os seus projetos – naturalmente avaliada a capacidade organizativa, as provas dadas pelos proponentes e a integração numa estratégia cultural claramente definida - e não ser ela (Câmara) a ter o monopólio da organização. O Periferias, que tem expressão pública durante quinze dias, assenta na permuta e no trabalho de intercâmbio ao longo de todo o ano - na ligação com os grupos e criadores instalados fora de Lisboa e ainda nos países de língua oficial portuguesa. Com este recorte, é uma iniciativa única no país e tem sido apresentado nos festivais em que temos participado, especialmente no Brasil, como um evento de resistência e inovação, que se soube adaptar à asfixia económica que os mercados financeiros impuseram a Portugal. O Periferias, com mais apoios logísticos e financeiros, pode trazer grandes nomes do teatro, da dança, das marionetas, da música, da literatura (alguns impossíveis de trazer através do sistema de permutas, e fora do alcance do atual orçamento), e alcandorar Sintra a Centro das artes performativas e da literatura expressa em português. Não temos de importar modelos se temos projetos singulares; temos é de varrer o preconceito saloio (no sentido pejorativo) de que o que é criado em Sintra, por sintrenses – de gema ou adotivos – é “muito giro”, mas o da “tia é sempre melhor”, mesmo que os orçamentos sejam altamente desequilibrados a favor da “tia”... Penso que o caminho se está a fazer, e mesmo os “santos da casa” estão, pouco a pouco, a fazer milagres, já que o Periferias, ainda que não tenha ultrapassado a tolerância das castas que dominam o “aparelho municipal” – sempre olharam a nossa atividade como concorrente e não como convergente -, já foi integrado na programação anual do concelho, fruto do reconhecimento politico que tem. Exemplo disso foi, na abertura da edição de 2014, estarem presentes várias personalidades da vida pública sintrense e representantes de todas as forças partidárias com assento na Câmara e na Assembleia Municipal. Em termos nacionais, a cobertura noticiosa da comunicação social – os quatro canais televisivos incluídos - arrancada com muita persistência e através dos nossos meios, prova que este não é mais um festival.

Quer destacar alguns dos momentos mais marcantes da edição deste ano?

JMA – Primeiro a exposição de trajes do teatro tradicional de S. Tomé e Príncipe (“Tchiloli”), que se realiza pela primeira vez em Portugal, numa parceria com a Fundação Roçamundo/CACAU de S. Tomé; segundo, a apresentação de duas co-produções realizadas pelo CO, uma em Moçambique e outra em S. Tomé e Príncipe; terceiro, o fato de, pela primeira vez, integrar espetáculos de rua; quarto, a extensão do evento dentro do concelho (Cacém, Auditório Municipal António Silva, e a Queluz, Teatroesfera). Por fim, conseguimos chegar à quarta edição …

Como vê o panorama cultural em Sintra nos tempos mais recentes?

JMA – Com otimismo céptico. Enquanto o Poder político não perceber, na ação, que a governação tem de ser feita em ligação articulada com os agentes culturais – e o mesmo se passa noutras áreas -, por muita boas intenções que existam, andaremos sempre ao sabor dos humores, inspirações e outros estados gasosos, de quem tem o Poder. Governar, no meu entender, é não ter medo de dialogar, de criar pequenos grupos de trabalho mistos, de estabelecer parcerias sólidas, oleadas, em que não se tenha sempre de partir do zero. Governar também não é só cortar nos (já magros) apoios financeiros, para a fotografia do Saldo (positivo) de Operações Orçamentais, do Saldo Contabilístico. Ou será que este saldo positivo está reservado para que o final do mandato seja “a mãe de todas as iniciativas”, para impressionar o eleitor?

Que conselhos gostaria de deixar a quem queira hoje enveredar por uma carreira no teatro?

JMA – Que sigam o conselho do primeiro-ministro e emigrem até os ventos soprarem de feição. Ou então, se ficarem, que se deixem de “armar em artistas” – o tempo do absinto inspirador é do séc. XIX -, e de multiplicar grupos e grupinhos; associem-se, entre si e com as estruturas existentes, para melhor enfrentarem a ventania. Infelizmente, vivemos num país onde os governantes não estimulam e acarinham o triângulo educação-ciência-cultura, que é um dos triângulos geradores de melhor futuro. Ora um país que não pensa no futuro, é um país adiado. Cabe aos cidadãos que não se conformam, romperem o bloqueio, desta visão limitada e anacrónica. E os artistas, antes de mais, têm de perceber que são cidadãos e exercem uma actividade política (não confundir com partidária) que, por si não muda o mundo, mas pode contribuir para a mudança necessária, porque todo o mundo é composto de mudança, como escreveu o poeta.