Entrevista a Ricardo Alves

 

Ferreira de Castro, o elegante prosador

 


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No mês em que se assinalam 40 anos do desaparecimento de Ferreira de Castro, falámos com Ricardo Alves, diretor do Museu Ferreira de Castro, sobre a obra do escritor, sua atualidade, e como vai Sintra assinalar a efeméride.






 

Ferreira de Castro morreu há 40 anos. Acha que a sua obra tem sido devidamente recordada e estudada?
O que poderia ser feito para tornar o seu legado mais visível? A visibilidade dos escritores já falecidos é sempre diminuta numa sociedade hipermediatizada, como o é aquela em que vivemos. Os casos excecionais de Fernando Pessoa ou de Eça de Queirós, apenas confirmam a regra, pouco compatível com a fruição séria e aprofundada da alta cultura. Tudo é mercado, tudo é centro comercial, tudo tende para o espetáculo, e a fruição aprofundada tende a restringir-se cada vez mais. Mesmo assim, estou moderadamente optimista: "A Selva" conhecerá, em 2014 a sua 41.ª edição, "Emigrantes" está na 29.ª, "A Lã e a Neve", na 17.ª" A nível académico, a obra castriana continua a estudar-se. Neste momento, estão em curso no museu duas investigações, de mestrado e de doutoramento, respetivamente sobre o Teatro de Ferreira de Castro e a Natureza e correlações humanas na sua obra. Do ponto de vista da divulgação da obra no mercado livreiro, registe-se que, após alguns anos de desleixo editorial - apesar do qual nunca deixou de ser reeditada e, por conseguinte esgotar-se nas livrarias -, a obra de Ferreira de Castro conheceu em 2013 um novo élan a esse nível, integrando o catálogo da editora Cavalo de Ferro, que se distingue pelo cuidado nas suas edições e pela extrema exigência dos autores publicados - de Tolstoi a Oscar Wilde, de Júlio Cortázar a Wislawa Szymborska ou Pirandello. Ferreira de Castro está, pois, entre os seus pares.

Quais as obras de Ferreira de Castro que considera mais conseguidas e que recomendaria um leitor que desconheça a sua obra?
Optarei em primeiro lugar pelo romance "A Selva" (1930), pelo que de único significa na literatura portuguesa, obra que combina com grande felicidade criação literária e experiência autobiográfica, considerado como um dos principais romances portugueses do século XX. A meu ver, a obra castriana elabora sobre dois tópicos principais: o da dignidade do indivíduo, incompatível com a sujeição de homens a outros homens; e o da própria dificuldade da existência - exacerbada pela inevitabilidade da morte -, em face das situações éticas dilemáticas que se colocam a cada indivíduo ao longo da vida. Nessa perspetiva, quanto ao primeiro caso, creio que "Emigrantes" (1928) e "A Lã e a Neve" (1947) são dois dos expoentes dessa mundividência; e quanto ao segundo, saliento "A Curva da Estrada" (1950) e "A Missão" (1954). Uma boa síntese de ambas as linhas-de-força da novelística castriana poderá ser encontrada em "Eternidade" (1933) e em "A Experiência" (1954). Deixo de fora outros bons romances, mas quero ainda referir as viagens (físicas e interiores) de "A Volta ao Mundo" (1940-44) a "As Maravilhas Artísticas do Mundo" (1959-63), fruto das restrições censórias vigentes no Estado Novo e do bloqueio criativo que a censura impõe a um criador, mas que, em compensação, permitiu transpor para o papel, a fome de mundo, o ímpeto errante de Ferreira de Castro.

Que traços distintivos encontra no escritor face a outros autores seus contemporâneos?
O modo como cada escritor pega nas palavras para construir um período e comunicar uma ideia só pode ser algo pessoalíssimo, com imagens e ritmos próprios, pois a escrita é filtrada antes de mais pelos cinco sentidos, cuja acuidade difere de indivíduo para indivíduo. O professor, Rodrigues Lapa escreveu na sua "Estilística da Língua Portuguesa" ser Ferreira de Castro "um dos nossos mais elegantes prosadores"; e Francisco Costa, nos "Diálogos Estéticos", salientou o formidável paisagista. Lembremos o lusco-fusco do Vale de Ossela, em "Emigrantes"; a paisagem urbana do Funchal, dotada de vontade própria, em "Eternidade"; a solidão dos contrafortes do Barroso, em "Terra Fria" (1934); a tempestade noturna na Serra da Estrela, em "A Lã e a Neve" - sem esquecer a paisagem devorando paisagem no emaranhado da Amazónia, em "A Selva". Qualquer verdadeiro autor tem um estilo próprio que o singulariza em face dos outros grandes, passados ou contemporâneos; e, por outro lado, há sempre uma mundividência pessoal distintiva, mesmo entre artistas contemporâneos. Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Raul Brandão, M. Teixeira-Gomes, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, José Saramago ou Agustina Bessa Luís não se confundem" Quando Ferreira de Castro publicou "Emigrantes", o romance português estava moribundo. Excetuando o grande Aquilino Ribeiro (1885-1963) - que ele muito admirava - e Raul Brandão (1867-1930) - o escritor português com maior eco junto do nosso autor - todos os romancistas dessa década desapareceram de circulação. Injustamente, alguns? Não creio: a grande arte nunca morre, e o tempo, que é impiedoso, como sabemos, tudo peneira. Óscar Lopes escreveu que "Ferreira de Castro foi o primeiro grande romancista português deste século [séc. XX] que se determinou por problemas objectivos e não apenas por impulsos íntimos." Ou seja: ao reclamar-se como "biógrafo das personagens que não têm lugar no mundo", trouxe para o primeiro plano da ficção um camponês igual a milhões de camponeses que trabalhavam a terra portuguesa de 1928, sem que a sua vida não fosse mais do que um horizonte de mediocridade, quando não de miséria; e evidenciando que cada indivíduo não era mais que uma peça facilmente substituível numa engrenagem social organizada para manter uma desigualdade iníqua entre a maioria dos seres humanos e uma minoria privilegiada que a parasitava, Castro abriu no romance português uma perspetiva de luta de classes que até então não existira. Por outro lado, a obra castriana tem uma outra dimensão, mais psicológica e individual, que felizmente o afasta duma ortodoxia ideológica à qual ele nunca se deixou aprisionar. O ensaísta Robert Bréchon frisou bem esse aspecto ao dizer que Ferreira de Castro era "o romancista da Subjetividade, da consciência de si, da solidão das consciências e do seu confronto", aspeto que se verifica em todos os seus livros, dando-lhes uma perenidade que de outro modo não lograriam. Lembremos "A Tempestade" (1940), "A Curva da Estrada", "A Missão" e "A Experiência", sem esquecer a única peça de teatro da maturidade, - "Sim, uma Dúvida Basta" -, censurada em 1936 e só editada em 1994.

Ferreira de Castro destinou a Sintra um vasto espólio pessoal. O que pode o visitante encontrar no museu que em 1982 foi aberto em sua homenagem?
O Museu Ferreira de Castro guarda a maior parte do espólio documental do escritor: manuscritos, correspondência, edições nacionais e estrangeiras dos seus livros, objetos pessoais, entre os quais os de escrita, fotografias, obras de arte que lhe pertenceram, nomeadamente retratos e caricaturas, maquetas de capas, periódicos, distinções honoríficas, a reconstituição do seu escritório com parte da biblioteca pessoal. O visitante encontrará o percurso de vida do autor de "A Selva", a partir desse mesmo espólio, previamente enquadrado por um documentário de 25 minutos. Enquanto que a exposição permanente está aberta ao público em geral, o acervo documental está restrito aos investigadores.

Quer contar-nos algum episódio de realce da ligação de Ferreira de Castro com Sintra?
A estada de Ferreira de Castro, em Sintra, está documentada desde a primeira metade da década de 1940. No Hotel Netto escreveu boa parte da sua obra, incluindo “A Missão”, uma das suas obras-primas; aqui se encontrou com muitos confrades, de Jaime Cortesão a Mário Dionísio; em Seteais conheceu Stefan Zweig, o romancista austríaco de ascendência judaica que o nazismo expatriara. Creio que o mais significativo episódio será o ato voluntário de legar-se, em corpo e espírito, a esta vila que amou, no ano de 1973. Para essa atitude, além de sua mulher, a pintora Elena Muriel, foram fundamentais quatro pessoas, três das quais sintrenses. Querendo deixar o seu acervo à Biblioteca Municipal de Sintra, para tal aconselhado pelo grande camilianista Alexandre Cabral, que frequentemente consultava a Biblioteca Camiliana de Sintra, foi dissuadido desse intento pelo notável romancista sintrense Francisco Costa, que considerou merecer a dimensão de Ferreira de Castro e do seu legado um museu para guardar o espólio, doado ao Povo de Sintra. Nunca será demais realçar o papel dos dois líderes políticos da autarquia na concretização deste gesto: António José Pereira Forjaz, último presidente da Câmara Municipal de Sintra antes do 25 de Abril, que aclamou a doação e escolheu o Casal de Santo António, ainda com o conhecimento do escritor; e o presidente da Comissão Administrativa, no pós-revolução, José Alfredo da Costa Azevedo, que prossegue o trabalho do executivo anterior e escolherá, com Elena Muriel, o local na Serra de Sintra em que Ferreira de Castro está enterrado, fazendo jus ao seu invariável romantismo.

Ferreira de Castro foi um emigrante e isso deu-lhe uma outra visão do que é ser português. Como descreveria a sua visão de português no mundo, no quadro da sua época?
A leitura de um texto autobiográfico publicado em "Os Fragmentos" (1974), sobre "A aldeia nativa", ilustra de forma cristalina o modo como Ferreira de Castro pensava a questão da nacionalidade. Ideologicamente, foi um internacionalista; o patriotismo enfático nunca lhe mereceu simpatia. Pelo contrário: sendo adversário do Estado como organização que subjuga os indivíduos, era um homem dos pequenos mundos (aliás, título do seu primeiro livro de viagens), e sente-se irmanado com todos os indivíduos; por isso algumas das suas ficções decorrem além-fronteiras: Brasil, Espanha, França. A experiência pessoal de haver emigrado entregue a si próprio, com onze anos e meio, para o Brasil, fê-lo compreender que as pátrias com os seus governos, os seus exércitos, os seus tribunais, a sua burocracia, são instrumentos de domínio de uma minoria possidente sobre a larga maioria dos indivíduos. Em "Emigrantes" elabora profundamente sobre essa circunstância. Como todo o libertário, Castro preferia o autogoverno da pequena comunidade, que através do princípio federativo, desenvolvido por Proudhon (aliás, um dos mestres da Geração de 70), estabelecesse pontes intracomunitárias. Com risco, poderíamos tentar alguma corres pondência portuguesa com o municipalismo de extração medieval e com o comunitarismo praticado em tantas comunidades portugueses - do qual ele dá nota na aldeia de Padornelos, no romance Terra Fria. Ferreira de Castro, que tinha a paixão da História, nunca deixou de prestar atenção aos testemunhos da presença portuguesa nas suas peregrinações pelo planeta. O museu guarda um vestígio lítico mínimo, recolhido nas ruínas da fortaleza de Afonso de Albuquerque em Malaca.

Que iniciativas tem o Museu Ferreira de Castro previstas quer para assinalar os 40 anos da sua morte, quer enquanto espaço cultural que se deseja vivo?
«Ler Ferreira de Castro, 40 anos depois» é uma iniciativa que trará ao museu 15 escritores, consagrados e jovens, sete dos quais do concelho de Sintra, falando cada um sobre um livro específico do autor. Esses encontros, ainda por agendar, decorrerão após o verão. O Clube de Leitura do Museu Ferreira de Castro, no seu sétimo ano de existência, debateu nesse âmbito, já em 2014, o romance "A Lã e a Neve", prosseguindo em Janeiro de 2015 com "A Missão" e "O Senhor dos Navegantes".