Entrevista a Miguel Anastácio

Dez anos do Sintra Estúdio de Ópera
 


“Existe apetência, mas para determinada população tem que ser a MÚSICA a ir ao encontro”


 

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Quem é o Miguel Anastácio e como surgiu ligado à música?
Antes de mais, sou um Sintrense onde resido desde que nasci, há 41 anos. A música surge de forma bastante natural, uma vez que os meus pais sempre estiveram ligados à música, embora noutro género musical, o Fado, que inicialmente, confesso, não apreciava. Como qualquer jovem o Rock era o género preferido. No entanto, nos anos oitenta estreou no cinema um filme que marcou definitivamente a minha vida: Amadeus, um filme que relata a relação conturbada entre dois compositores "rivais", Mozart e Salieri. Embora o enredo do filme seja ficcional por uma qualquer razão fiquei fascinado com todo aquele mundo reproduzido no filme e, em particular, com o compositor menos conhecido, Antonio Salieri. Praticamente no dia seguinte decidi ir aprender música. E assim inscrevi-me na antiga Escola de Música Leal da Câmara (hoje Conservatório de Música de Sintra) onde iniciei o meu percurso.

Quem e quando decidiu fundar o Sintra Estúdio de Ópera?
Em finais dos anos 90 decidi estudar Canto com a professora Albertina Xavier, também residente no Concelho de Sintra. Em conversa chegámos à conclusão que em Portugal as oportunidades para novos cantores eram praticamente inexistentes, em particular oportunidades de aprendizagem ou seja, ateliês que proporcionassem formação integrada de canto e movimentação cénica ou representação. E foi assim mesmo que surgiu a ideia de criarmos a "nossa" própria estrutura. Juntou-se à equipa o encenador Mário Sousa, obtivemos uma colaboração e apoios preciosos do Maestro Graça-Moura e da Orquestra Metro-politana de Lisboa e assim surgiram as bases de sustentação para o projeto que viria a estrear em 2001 com o nome de Sintra Estúdio de Ópera (SEO), um projeto efetivamente ousado e pioneiro no nosso País.

Quer contar-nos um pouco do percurso da associação, e dos momentos mais marcantes deste então?
Como referi anteriormente, o SEO estreou apresentando uma pequena ópera cómica, L'ivrogne Corrigée de Gluck que teve duas récitas em Sintra e outras duas em Lisboa. Nesta fase o SEO estava integrado no Progresso Clube de Algueirão-Mem Martins e desenvolvia a sua atividade numa base amadora, no melhor sentido da palavra. Com o tempo e com a consequente qualificação dos seus colaboradores e incremento de atividade, que culminou com a criação da Orquestra de Câmara de Sintra em 2004, houve uma necessidade de auto-nomização, o que veio a acontecer em 2005 tornando-se na primeira estrutura profissional de Sintra, e até agora única, inteiramente dedicada à produção musical. No presente ano de 2015 assinalamos, portanto, o nosso décimo aniversário. Nestes dez anos destacamos as colaborações com maestros de renome internacional como Jean-Sébastien Béreau e Álvaro Cassuto a criação do Quarteto de Cordas de Sintra, que é no momento o nosso ensemble com maior projeção nacional e que conta já com internacionalização, tendo integrado, no ano passado, a programação de um dos mais importantes festivais de música de câmara da Holanda, com recitais no prestigiado Museu Hermitage, em Amesterdão. Destacaria ainda a produção das óperas portuguesas A Vingança da Cigana, de António Leal Moreira e As Taças de Hymineu, de autor anónimo do século dezoito. Temos ainda, quer com o Quarteto, quer com a Companhia de Ópera, com a Orquestra ou com o Ensemble Vocal estabelecido parcerias com a RTP - Antena 2 que já gravou e transmitiu cerca de duas dezenas de concertos nossos, a maioria dos quais registados em Sintra levando a todo o País, e não só, o nome de Sintra. Esta parceria com a Antena 2 resulta ainda de um dos aspectos principais da atividade do Sintra Estúdio de Ópera: a investigação sobre a música portuguesa dos séculos dezoito e dezanove, recuperando partituras e compositores nacionais esquecidos. Este trabalho já nos permitiu realizar a estreia moderna de mais de cinquenta obras, algumas das quais verdadeiras obras primas.

Como vê o panorama da música em Sintra, e em especial o da música dita erudita?
A música erudita em Sintra, pelo menos de uma forma regular, tem tido lugar apenas no âmbito do Festival de Sintra e, mais recentemente, nos concertos comemorativos da elevação de Sintra a Património Mundial. O Festival de Sintra é um dos principais festivais de música a nível nacional mas parece-me que tem revelado algum declínio nos últimos tempos o que urge contrariar. Por todas as condições "naturais" de Sintra e pelo seu património é inevitável a associação da Cultura a Sintra. Sintra é Cultura e é isto que passa para fora, é este fator que "vende" turismo e atrai visitantes.
Na área da música poderia ainda ser feita tanta coisa, como manter uma programação regular de concertos ou recitais nos espaços municipais, apresentação de ópera ou grandes concertos de orquestra. Tudo isto seria possível, mesmo considerando algumas limitações, assim houvesse esse desejo por parte de quem responsável. Sintra tem todas as condições para ser o centro musical de excelência de Portugal. O Sintra Estúdio de Ópera tem tentado garantir alguma regularidade de programação em coproduções com o Centro Cultural Olga Cadaval e apoio da Câmara Municipal de Sintra que tem sido fundamental.
Mas é preciso ter em conta que esta área exige uma grande qualificação por parte dos intérpretes e quase sempre faz recurso a efetivos instrumentais e vocais de média ou grande dimensão o que leva a que qualquer produção seja forçosamente dispendiosa. As entidades têm que estar sensibilizadas para esta especificidade. Por outro lado a qualidade só se atinge com a exigência e igor. Por isso fazemos um esforço permanente na procura dos melhores intérpretes e é isso que tentamos oferecer ao nosso público: qualidade.
Julgo que esse objetivo tem sido conseguido ao longo destes anos: procurámos sempre fazê-lo com a maior entrega, paixão, humildade e ética.

Quer destacar alguns nomes individuais ou coletivos que tenham contribuído para a melhoria do ensino e da divulgação da música em Sintra?
A nível de ensino será incontornável referir o importante papel que o Conservatório de Música de Sintra tem desempenhado no Concelho, tendo em conta a sua atividade de cerca de quatro décadas. Em relação à divulgação, e correndo o risco de alguma imodéstia, julgo que o Sintra Estúdio de Ópera e os seus diversos ensembles (Companhia de Ópera, Orquestra de Câmara de Sintra, Quarteto de Cordas de Sintra, Ensemble Barroco de Sintra e Ensemble La Peña) têm dado uma excelente contribuição para a diversificação da oferta musical. Creio que é muito importante referir também que, no âmbito do nosso trabalho de investigação musical e recuperação da música antiga portuguesa, temos procurado repertório escrito especificamente para Sintra, tendo já efectuado alguns concertos com este património musical: sinfonias e árias de óperas escritas para o Real Paço de Queluz no século XVIII, música sacra de inícios do século dezanove escrita para a Igreja de S. Miguel e Capela do Palácio de Queluz. Por encomenda específica para a Orquestra de Câmara de Sintra, estreámos ainda a obra Mystica, do compositor Rui Rodrigues, obra inspirada e dedicada a Sintra.

Considera que há um público fiel e atento para o fenómeno da música dita erudita entre nós? O que deveria ser feito para promover a formação de públicos nessa área?
Sendo Sintra um dos Concelhos mais populosos do País, naturalmente que existe um mercado latente nesta área e que tem que ser explorado de forma mais assertiva. Se o público residente em Sintra se desloca a Lisboa para assistir a concertos no CCB, São Carlos, etc, se existir oferta semelhante mais próxima certamente optará por esta segunda hipótese. Esta situação passa fundamentalmente pelo desenvolvimento de uma boa estratégia de marketing. Uma das principais lacunas em Sintra é a promoção das diversas atividades que aqui se desenvolvem que, regra geral, é muito tardio ou deficiente. No que diz respeito à formação de públicos, durante cinco anos o SEO desenvolveu um Ciclo de Recitais apresentados em zonas periféricas do concelho, em articulação com a Câmara e com as Juntas de Freguesia, que registaram sempre salas cheias. Portanto, existe apetência, mas para determinada população tem que ser a música a ir ao encontro.
Por outro lado, também é interessante verificar que existe um público fiel aos concertos do SEO e que, de alguma forma, identificam os nossos ensembles como "os seus", ou seja, a "sua" Orquestra de Sintra, o "seu" Quarteto de Sintra e esta "apro-priação" é fundamental para garantirmos uma relação afetiva com o público.
Junto das crianças também há ainda muito a fazer, nomeadamente através de con-certos ou recitais pedagógicos, apre-sentações nas escolas mais regulares. Fiquei particularmente sensibilizado com uma situação que aconteceu durante um recital pedagógico numa das bibliotecas municipais e que se dedicava a crianças oriundas de um dos bairros mais desfa-vorecidos do Concelho: durante o concerto uma menina de sete anos começa a chorar. Quando termina a peça, perguntámos se estava tudo bem. A menina respondeu, muito emocionada, que nunca tinha ouvido um violino a tocar.
São estes momentos que verdadeiramente nos marcam e que dão sentido ao trabalho que desenvolvemos.

Quais são os vossos planos para 2015?
Em 2015 assinalamos o nosso décimo aniversário. Estamos ainda a estudar a viabilidade de um grande concerto mas, como referi atrás, são projectos muito caros e que obrigam a garantir os apoios necessários para poderem ser concretizados. Planeamos também para breve uma nova produção de ópera, que será a estreia moderna de uma ópera barroca portuguesa, um verdadeiro tesouro perdido da nossa música. Temos também um convite para um concerto a ser transmitido em direto pela Antena 2, e que deverá acontecer em Março e, mais para o final do ano, a presença do Quarteto de Cordas de Sintra no Festival Sons do Centenário, um conjunto de doze concertos nos monumentos históricos do Minho.