Entrevista a Carlos Manique

CARLOS-MANIQUEEntrevista com o historiador de temática sintrense Carlos Manique da Silva.Nascido em Lisboa, em 1963, é doutorado em História da Educação pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa (2008). Atualmente é diretor do Centro de Formação da Associação de Escolas Rómulo de Carvalho (Mafra). Foi professor visitante nas Universidades Estaduais de S. Paulo e de Santa Catarina (Brasil).

 

 

O Carlos Manique é um estudioso com obra profusa sobre a História de Sintra. Quais são as obras de referência mais antigas sobre a nossa vila, e o que delas podemos concluir?

Sem esquecer a obra do visconde de Juromenha, Cintra Pinturesca, publicada em 1838, considero que há dois estudos absolutamente incontornáveis. Refiro-me, por um lado, aos Brasões da Sala de Sintra, de Anselmo Braamcamp Freire, obra dada à estampa em finais do século XIX e, por outro lado, ao trabalho do conde de Sabugosa, O Paço de Sintra, publicado em 1903. Tenhamos em mente, de resto, que o século XIX é a época de formação dos estudos locais. No entanto, em termos de investigação histórica, há claramente uma distinção que se impõe fazer. De facto, as “monografias” publicadas antes das últimas duas décadas de Oitocentos apresentam quase sempre um caráter não-erudito e literário, que tende a privilegiar o contato fácil com o leitor comum. Acima de tudo, interessa registar o pitoresco, o que merece ser visto. É nessa categoria que se inscreve a citada obra do Visconde de Juromenha. Já no caso dos estudos de Anselmo Braamcamp Freire e do conde de Sabugosa, a narrativa é alicerçada em inúmeras fontes primárias. A ideia subjacente é a da reconstituição do passado supostamente nos seus próprios termos. Num certo sentido há um fetiche pela investigação arquivística, própria, aliás, do positivismo de finais do século XIX. 

E quais considera serem as referências historiográficas mais importantes e contemporâneas que vieram trazer novidade e profundidade aos estudos sintrenses?

Julgo que personalidades como João Martins da Silva Marques, José Alfredo da Costa Azevedo e Francisco Costa produziram estudos de inegável mérito e marcaram, a partir da década de 1980, várias gerações de investigadores da história de Sintra. Da primeira personalidade, recordo a obra, hoje pouco divulgada, Sintra e Sintrenses no Ultramar Português (1949); de José Alfredo, lembro os vários volumes das Velharias de Sintra; da pena da última personalidade referencio (aqui trata-se de uma opinião muito pessoal) o livro Gonçalo Anes Homem Bom de Sintra (1959). Com efeito, é majestosa a forma como Francisco Casta alia a sua faceta de romancista a um exercício criterioso de investigação histórica. Lê-se numa passagem: “Sintrenses, acabo de encontrar, em pergaminhos que são vossos, a figura de um homem de caráter […] Se quereis conhecer o que nos resta dessa alma, tereis de imaginar comigo o ambiente nacional em que ela se formou”.

A partir da década de 1980 registou-se um considerável influxo nos estudos históricos sobre Sintra. Não queria, porém, mencionar nomes de investigadores, sob pena de me esquecer de alguns. Registo, apenas, o livro Sintra, de Vítor Serrão, publicado em 1989, e justamente por considerar que marca um novo tempo, designadamente no que concerne à preocupação com o património e a memória sintrenses.

Uma das instituições por si estudadas em particular tendo sido a Misericórdia de Sintra. Pode resumir a sua importância na vida coeva da vila e seu legado histórico e social?

Na sociedade portuguesa, as misericórdias são instituições absolutamente basilares. Nascidas em finais de Quatrocentos, aliam a dimensão penitencial a uma intervenção social (dirigida, inicialmente, aos encarcerados e enfermos). Amiúde, as mais prestigiadas figuras da vida local passaram pelas fileiras das misericórdias, desempenhando cargos reservados aos nobilitados. Assim sucedeu na Misericórdia de Sintra, cujo primeiro provedor foi André Gonçalves, almoxarife de Sintra, corria o ano de 1545. Não deixa de ser relevante que, ano após ano e até ao século XIX, a administração das misericórdias tenha estado a cargo de um conjunto de homens nobilitados (conselheiros nobres) e de oficiais mecânicos (pedreiros, carpinteiros…), os quais reuniam em redor de uma mesa (daí a designação “mesários”) no sentido de discutir e resolver os problemas da comunidade. Trata-se, certamente, de um importante legado, se bem que não podemos falar de paridade.

Se considerarmos a Misericórdia de Sintra, verificamos que a sua intervenção a nível hospitalar ainda hoje é recordada. Essa presença, por assim dizer, traduzida na prestação de cuidados médicos a doentes pobres (e também a alguns abastados), foi muito forte até ao 25 de Abril de 1974, razão pela qual perdura na memória de muitos sintrenses. A partir dessa data, consumada a nacionalização dos hospitais, as misericórdias souberam encontrar novos caminhos, dirigindo a sua ação para os mais idosos (criando lares e centros de dia, prestando apoio domiciliário…) e os mais jovens (fundando creches, jardins de infância …), consagrando, ainda, uma valência intitulada “ação social”. O legado das misericórdias funda-se no humanismo católico e está espelhado nas sete obras de misericórdia espirituais e nas sete obras de misericórdia materiais. É curioso, de resto, que os estatutos das misericórdias deem pelo nome de Compromisso. Existe, de facto, um compromisso com os desvalidos da sociedade. Sintomaticamente, “Por bem” é a divisa que a misericórdia de Sintra adotou.   

Os arquivos e as bibliotecas são parte importante da investigação histórica de Sintra. Que obras ou documentos em sua opinião deveriam ser mais estudados e recuperados para um aprofundar do conhecimento histórico de Sintra?

Não obstante o facto de alguns investigadores terem dedicado o seu tempo ao estudo da história medieval de Sintra (lembro, por exemplo, Sérgio Luís de Carvalho), creio que importa fazer uma nova leitura das fontes primárias já conhecidas. Tal é o caso, entre outros que poderia citar, dos pergaminhos da Gafaria e do Hospital do Espírito Santo, classificados e transcritos por João Martins da Silva Marques (coleção do Arquivo Histórico da Misericórdia de Sintra).

Que figuras sintrenses considera mais relevantes e marcantes na construção da nossa identidade?

No contexto sintrense, Francisco Costa é uma personalidade central, nomeadamente pela sua intervenção cultural no período compreendido entre os anos de 1930 e de 1980. Devo dizer que a minha opinião não resulta apenas da avaliação que faço do seu labor enquanto estudioso de temas sintrenses ou, mesmo, do seu desempenho na qualidade de poeta e romancista (com projeção nacional). Funda-se, sobretudo, nas preocupações que evidenciou com a preservação do legado histórico e cultural dos seus conterrâneos. É paradigmática, a este respeito, a ação que levou a cabo no sentido de fundar a biblioteca e arquivo municipais.

Acha pertinente a criação duma cátedra de estudos sintrenses e sua localização num espaço público de relevo aqui no concelho?

Não creio que a criação da referida cátedra seja necessária. Há certamente outras formas de fomentar o interesse pela história de Sintra, bem assim como de promover a sua divulgação. Veja-se o trabalho que tem vindo a ser desenvolvido por algumas associações culturais radicadas no concelho e também por alguns investigadores. Julgo, por outro lado, que os Encontros de História de Sintra devem constituir um espaço privilegiado para o balanço da produção científica e para a apresentação de novas perspetivas de investigação. Também é preciso dar voz aos jovens historiadores.

Do legado romano, árabe e cristão, que expressões culturais e sociológicas considera serem imanentes a uma maneira de ser sintrense, se é que tal conceito se pode considerar correcto?

Tenho alguma dificuldade em responder a essa questão. Na minha perspetiva, o questionamento faria algum sentido se recuássemos no tempo… se pensássemos, por exemplo, na Sintra medieva. Mas, desde os finais do século XVIII que a própria alteração da toponímia foi obliterando a memória de influências ancestrais, as quais traduziam uma confluência de culturas e a coexistência pacífica entre elas – no fundo, uma certa “maneira de estar”. Lembro, a título de exemplo, o desaparecimento da rua da Meca, contígua ao Paço Real.