Mistérios de Sintra

caminheiro agendaUm artigo de Miguel Boim, autor de “Sintra Lendária”, também conhecido como o Caminheiro de Sintra.

Se desse seus passos de solitária forma num ambiente emudecido por sua própria atenção na Serra de Sintra à noite, iria começar, aqui e ali, a ouvir as lentas passadas de um noturno salteador na folhagem caída, a longa impressão de estar a ser seguido e observado por entre os troncos das escurecidas damas da floresta, reconhecendo apenas o marulhar do vento através de seus verdes cabelos, suas verdes folhas em noturnas negras copas.

Vindos de todas as direcções surgiriam ruídos e impressões que no medo que o cercaria lhe garantiriam a presença de passos e mãos para si se dirigindo. E o mistério, esse, esse adensar-se-ia consoante na noite os seus olhos continuassem abertos. Bem abertos.

Mas tal como o oscilante turíbulo quando passa deixa o incenso como um véu núbio que oculta ao fundo o altar, também o passar de muitas noites faria com que o véu de todos os medos, todos os receios, se levantasse, deixando perceber a verdadeira e natural origem dos ruídos.

A noite da Serra de Sintra colocaria assim, entre si e o conhecimento do porvir, os véus que ganhando vida através da sua imaginação na mística Serra, formariam mãos que o tentariam agarrar.

E tal como se passaria consigo, há séculos assim se passa neste lugar da Terra que o grego Ptolomeu anotou como Montanha da Lua.

É claro que existem sempre, aqui e ali, alguns risinhos abafados quando se fala de coisas como estas. Ou melhor, dos medos que essas coisas fazem levantar dentro da mente das pessoas. Uns risinhos abafados, e outros bem largos, tão desagradáveis que provocam o mesmo ar de incómodo ao Diabo como quando esse se levanta da sua poltrona e percebe que quem lhe bateu à porta foi apenas mais um miúdo que fugiu.

Mas, enfim, a vida é feita do tudo, de todos, e muitos existem que não conseguem compreender, aceitar ou simplesmente respeitar, que a realidade da vida e da morte é aquela mesma onde todos nós no tempo nos deslocamos.

É também através das diferentes realidades de como se encarava a vida e a morte, a fé e os abalos por essa sofridos, que se consegue compreender um pouco melhor a nossa cultura através dos séculos, e também a nós próprios através dos dias.

Serra e Vila estão repletas de exemplos, repletas de pequenas histórias que formam a História. Um imenso tesouro são os registos de velhas organizações religiosas que em grande número para um diminuto espaço, estiveram presentes na Serra, e em que a vida dos seus religiosos muito demonstra, em sua fé e em seus abalos de fé. Escrevo abalos de fé, porque tendo fé, perece essa de cada vez que o Homem deixa a incerteza entrar em seu coração. E, creiam-me, alguns registos mostram os mais estranhos abalos com o que nesta Serra foi visto, com o que nesta Serra foi sentido.Mas existe mais. Muito mais.

Um grande herói da nossa História, da História de Portugal, tinha uma profunda ligação à Serra de Sintra. Conhecido como D. João de Castro, enquanto Vice-Rei da Índia viu-se uma vez obrigado a pedir um empréstimo aos senhores portugueses de Goa, para no Inverno – antes de nova vaga de ataques surgir – reparar a Fortaleza de Diu. Tentou entregar os ossos de seu filho como penhor, mas esses ainda não se encontravam em condições pois tinha falecido havia pouco – facto que em luto, em vez de o acabrunhar o fez mandar repicar os sinos da cidade e cavalgar galhardamente vestido, dizendo que seu filho mais do que ter morrido, tinha ganho a glória como cavaleiro. Sem poder ter os ossos de seu filho como penhor, cortou por isso a sua barba e entregou-a como verdadeira natureza de sua honra, como garantia de que pagaria o que em seu nome pedia para servir o Império Português. No século XIX encontrava-se o relicário com as suas barbas numa propriedade da Serra de Sintra. Hoje não se sabe onde se encontra aquele que em termos simbólicos representa um dos maiores tesouros da nossa História, de íntima forma ligado a Sintra.

E que dizer de sonhos tidos por Reis numa gruta, anotados em crónicas religiosas e que deram origem ao Convento dos Capuchos da Serra de Sintra? Na verdade essa pequena caverna é a atual Igreja do Convento, ainda hoje maravilhando quem o percorre, pela austeridade e cruezas com que alguns homens se entregavam ao caminho do Divino.

Ou ainda a muito desconhecida memória do Castelo dos Mouros ter caído num estado de abandono nos anos de 1400, fazendo com que nos séculos seguintes fosse um ícone do mal para os habitantes da Vila que cá em baixo o miravam, temendo esses os espíritos que o guardavam.

Crenças e sentires têm feito a História desta Serra. O conhecimento tem levantado muitos véus que encerram mistérios, mas a beleza da névoa encerrará sempre em si aqueles que só na vida de cada um, cada um de nós conhece, e nos ligam a tão especial lugar na Terra.

O Castro Forte – como Camões lhe chama nas palavras de Os Lusíadas que ainda hoje ecoam dentro da nossa mente quando corremos os versos com quase 500 anos –, as masmorras dos Capuchos da Serra de Sintra, a névoa que em fiapos passa entre as ameias e os merlões do Castelo como se fossem velhos espíritos do passado da História assim em nosso tempo surgindo, são algumas das infindáveis histórias que a História de Portugal na sua fortaleza imaterial de Sintra possui.

 Os mistérios de Sintra, esses encontram-se em cada pormenor desconhecido, em cada peça ausente, em cada intenção velada. E são todos eles, verdadeiras portas para o incorporar da História de Sintra dentro do coração de todos aqueles que com essa se deixam maravilhar.