INSTÂNCIAS SIMBÓLICAS DA EXISTÊNCIA
ALVES DIAS
desenho, pintura e instalação
23 de setembro a 13 de novembro de 2022 | MU.SA - Museu das Artes de Sintra | Galeria Municipal - piso 0
Alves Dias (1952), vem através do conjunto de obras apresentadas nesta exposição reivindicar um espaço e um tempo delimitados, capazes de nos lembrar das ritualizações que fazem parte da significação da própria existência. Estas projecções são inseparáveis da sua consciência artística, e derivam da urgência de sedimentar e experienciar a criação enquanto materialização das «coisas» desenhadas, fotografadas, pintadas ou esculpidas em fios têxteis que reafirmam as nossas próprias vidas como sendo importantes e tangentes à ideia de eternidade, evocando a emanação da espiritualidade que preside à «coisificação» das obras de arte (Martin Heidegger).
Este desígnio, está ancorado na luz límpida das «instâncias simbólicas», enraizadas nas visões da juventude, capazes de assinalar as memórias e vivências da Escola de Artes Decorativas António Arroio, ao Camões, onde foi admitido como aluno, à cultura artística desta instituição, que no panorama nacional marcou gerações de artistas. A sua formação é enquadrada por uma constelação disciplinar teórico-prática apaixonante, pelos equipamentos específicos, delimitada por horários e espaços-ateliers, povoados de objectos e imagens e fundamentalmente pelos Mestres, como a Estrela Faria, o Rafael Salinas Calado, a Manuela Mourato e a Teresa Raposo, que o ajudaram a perceber criticamente o desenho, a pintura e a tapeçaria enquanto «mistérios maiores», capazes de manifestar a «intimidade transcendental» que caracteriza os artistas.
O corpus pictórico deste pintor, contraria a institucionalização e a indolência da arte oficial (Richard Wagner) é indissociável da ideia e do tempo de aprendizagem e procedimentos da Modernidade, em que identificamos apenas algumas das figuras tutelares que o habitam, como o Jean-Honoré Fragonard, o Eugène Delacroix, o Gustave Klimt, o Auguste Rodin ou o Pablo Picasso. Na actividade projectual são assumidas, estratégias de citação, de apropriação e de colagem, que consolidam a transfiguração dos materiais e matérias em novos horizontes artísticos, provocando no observador a interrogação das novas emoções e questionando-o sobre o consumo invasivo das «transgressões institucionalizadas» (Roger Scruton). Negam-se a miscelânea acidental ou as narrativas melodramáticas.
Alves Dias, anuncia e instaura uma territorialidade imagética feita de conhecimento, competências técnicas, estudo, testagem, inovação e descoberta continuada e persistente, que esculpem coerência discursiva nas obras organizadas em séries (Um Olhar para Além do Mar, Gestos de um Sonho, Ritos e Magias, Des.A.Fios,1998-2015), individualizadas no requinte e delicadeza com que foram produzidas, espécie de modelo ideal (Platão).
Este olhar «intimista-animista», exprime a preocupação de gerar a ambiguidade entre representação e presentação, e isto é conseguido por um cromatismo subtil (utilizando várias tintas) que se funde nas superfícies texturadas, recorrendo a «velaturas-colagens», essenciais às transparências que multiplicam planos e profundidades. A regeneração e a acentuação do simbolismo cenográfico das figuras aproximam-nos de outros deuses, vislumbram-se em máscaras totémicas-tribalistas, miscigenadas pela sobreposição de materiais têxteis (alinhavos, tecidos, e bordados) que nos remetem para a frescura das sombras das árvores, para a água, para os verdes das folhas, para os animais e para os gestos dos corpos acompanhados por cadências e sons entrelaçados com formas abstractas ritmadas, por escudos, instrumentos ritualistas, objectos de culto, que transferem e nos fazem planar na religiosidade dos vastos horizontes das paisagens africanas. Este estar, feito de vivência, não é compatível com a frivolidade estéril das hegemonias civilizacionais, apelam sim, ao caracter regenerador e universalista da arte.
A relação primordial-fundadora manifesta-se no desenho, desafiador das memórias arcaicas, consolidando e anunciando as ideias, mediadas por linhas-riscos que podem ser traços que se sobrepõem a grafite, mas também se apresentam como fios-linhas, capazes de sugerir figuras-formas representando corpos sensuais como nas «Surprise Boxes» (2011), são «livros-relicários» a abrir, ou recorrendo ao arquivo imagético da infância em que as folhas os pássaros e os ramos das arvores, nas suas diversas escalas afectivas, nos lembram a poesia encantatória das pinturas de Marc Chagall.
As pinturas, são um lugar concebido como espaço de memórias terrenas, liberto das coisas úteis em que os aspectos estruturantes da composição implicam a permanência contemplativa do observador. A composição, por vezes, é fragmentada de forma ortogonal, lembrando o arquétipo do tecido (teia-trama), de onde emergem rectângulos estabilizantes, nos quais se inscrevem e interpenetram «micro-narrativas» que fazem alusão aos saberes contados e às nostalgias do primitivismo (Enlear Silêncios, Rumo ao Sol e Chão de Sombras, 2019-2022,).
O pintor, meticulosamente elabora «corpos-têxteis», pedra angular em todo o discurso artístico proposto. Este saber fazer, foi vivido e experienciado com a Gisella Santi, nas lides da tecelagem e da tapeçaria, no studio do Grupo 3.4.5. - Associação de Tapeçaria Contemporânea Portuguesa (1979) onde trava amizade com a Maria João Gromicho. Os «corpos-têxteis» são instalações germinadoras de interações assombrosas com «coisas enredadas», urdidas, tecidas, bordadas, transmissoras de imagens e processos cúmplices e portadores da «estrutura redentora» da mão, cujo vestígio encarna em todas as superfícies das obras. Esta «pele» reveste as obras «Velatura Têxtil I-VI (2018)» e «Corpo do meu Corpo-2022», apelando à sustentabilidade e à urgência de um pensamento holístico que pacifique a constante destruição do ventre da natureza.
Não deixa de ser interessante a suspensão desses «corpos-obras», em formato de frisos dispostos na horizontal ou suspensões na vertical, recordando a tapeçaria de Bayeux, descrevendo histórias e tacteando marcas indeléveis destas técnicas ancestrais, que são na realidade suporte da substância espiritual a que chamamos alma, que «acidentalmente» incorporou esses corpos, com nomes-títulos dos «lugares dos possíveis», como acontece em «Desejos I e II», realizados em 2015.
Através desta exposição Alves Dias, convida-nos a aceder à celebração de um mundo de significações que existe nele e que agora partilha connosco. Faz-nos pressentir «coisas arrebatadoras», mediadas por silêncios dilatados, capazes de desenvolver no observador a consciência da necessidade de se predispor à interpretação crítica do ver vendo, descobrindo em si aquilo que está para além das aparências.
Hugo Ferrão
Casa das Três Colunas
Amieira do Tejo
2022
Sobre o autor
n. 1952
1972 - Curso de Pintura, da Escola Artística António Arroio, em Lisboa. 1972 a 2008 - Exerceu a profissão de professor no Ensino Particular e Oficial, lecionando as disciplinas de Educação Visual e Educação Tecnológica. 1980 – Conclui o Estágio Profissional nas áreas de Papéis, Cerâmica, Madeiras e Têxteis. 1982 – Interessa-se e dedica-se à Tapeçaria Contemporânea, pesquisando novas formas, criando volumes e texturas, com diversos materiais. 1984 – Curso de Formação em Tecnologia de Materiais Específicos na Universidade de Aveiro. 1988 – Dirige Cursos de Tapeçaria, em Queluz e ingressa no Atelier de Gisella Santi. 1989 – Retoma a sua atividade como Pintor e integra o Grupo 3.4.5. – Associação de Tapeçaria Contemporânea Portuguesa. Divulga a Tapeçaria Contemporânea, orientando, aulas em Centros de Tempos Livres a nível do Ensino Oficial. 1993 – Curso, Utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação em Contexto Educativo, na Escola Superior de Educação, em Lisboa. 1997/99 – Frequência da Licenciatura em Ensino de Educação Tecnológica, na Universidade Aberta, em Lisboa. 1998 – Júri de Seleção no IV Simpósio de Tapeçaria Contemporânea, em Loures. 2013 a 2015 foi presidente da Associação do Círculo Artístico e Cultural Artur Bual. 2012 – Curso, Financiamento de Projetos Culturais através de Patrocínio, Mecenato e Crowdfunding, na Sociedade da Língua Portuguesa, em Lisboa. 2021 – Júri de seleção na XVII Edição do Prémio de Pintura e Escultura de Sintra D. Fernando II, CM SINTRA.
Exposições - Realizou mais de trinta exposições individuais e mais de cento e oitenta e cinco coletivas e virtuais internacionais, em Museus, Galerias Municipais, Galerias Particulares, em Portugal, Espanha, Brasil, Canadá, França, Macau, Argentina e China.
2021 - Convidado para participar na exposição “PENINSULARES” Segundos Encontros Ibéricos de Arte Têxtil Contemporânea, no Museu Nacional de Artes Decorativas, em Madrid.
2021 – Participou no “XIV Salón Minitextiles”, Centro Argentino de Arte Textil – CAAT – Argentina.
2020 - Selecionado para as exposições virtuais internacionais: “Cuarentenarte” promovida pela artista Silke e “Barbijos Intervenidos”, pelo Centro Argentino de Arte Textil – CAAT, na Argentina.
2019, 2017, e 2015 - Participou nas Exposições ARTELAB Tapeçaria Contemporânea, realizadas pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, no Museu da Tapeçaria de Portalegre-Guy Fino, em Portalegre e em 2016 na Oficina Cultural do Instituto Politécnico de Viana do Castelo.
Bienais - 2022 – Selecionado para a 1st International Contemporary Material Arte Biennale, em Haitiansky Center, Quingdao, China.
2021 - Participou na 11th “From Lousanne To Beijing” International Fiber Art Biennal, China.
2019 - Convidado, para representar Portugal, na 8th International Biennal of Contemporary Textile Art WTA, Madrid, Spain.
2018 e 2014 – Selecionado para as Bienais Internacionais de Arte Têxtil Contemporânea CONTEXTILE, em Guimarães.
2000 – Selecionado para 1º Encontro de Tapeçaria Portuguesa Contemporânea, em Loures.
1993 e 1991 – Selecionado para o 1º e 2º Simpósios de Tapeçaria Contemporânea, em Loures.
1988 - Selecionado para a 1ª Bienal Nacional de Tapeçaria, em Matosinhos.
Prémios - 2021 - Medalha de Bronze, atribuída na 11th “From Lousanne To Beijing” International Fiber Art Biennale, China.
1996 – Menção Honrosa na 1ª Bienal de Pintura “Prémio Cardoso Lopes”, na Amadora.
1994 – Prémio dos Sócios da Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa.
1993 – 1º Prémio de Pintura no concurso de Artes Plásticas do Instituto Irene Lisboa.
Referências - Está referenciado em alguns livros e revistas de arte, bem como a nível da Tapeçaria e Arte Têxtil Contemporânea, na defesa de mestrados e doutoramentos, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e na tese da artista Kelly Liang, publicada na revista académica mais importante da China. Apresentação de obras na VII International Scientific and Practical Conference “Socio-Cultural Trends in the Development of Modern Disign and Art”, pela artista e curadora Elena Chepelyuk, no Ministry Education And Science Of Ukraine Kherson National Technical University, na Ucrânia.
Coleções: está representado em várias coleções de arte pública e privada.PERFORMANCE “LINHAS EM DIÁLOGO “
LUCRÉCIA ALVES
As viagens das linhas de Alves Dias, na sua "linha vida", cruzam-se numa dança da linha vermelha em que o diálogo com as minhas linhas, se reflete nos movimentos de/para, num processo contínuo desde o cimo das árvores à caixa de costura da mãe...