AS IMAGENS DO MUNDO E OUTROS ENGANOS

PAULO DAMIÃO

pintura

18 de novembro de 2022 a 08 de janeiro de 2023 I MU.SA – Galeria Municipal – piso 0

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Apresentação
Victor dos Reis  (Curadoria)

É longa a relação de amor e fascínio (mesmo que acompanhada de crítica e, às vezes, revolta), por parte da arte, dos artistas e dos seus amantes, por admiráveis outros mundos – sobretudo quando estes nascem e desafiam aqueles que conhecemos e, devido a isso, não só se tornam suficientemente convincentes ou persuasivos, mas, mais importante, imbuídos do estranho poder de fazer-nos embarcar, a nós, os seus observadores, em viagens mentais sem destino nem rumo certo, mas também sem uma duração objetivamente mensurável. Como dizia Roger de Piles (1635-1709), no seu Cours de peinture par principes (1708), este poder de certas imagens, nascidas do entusiasmo com que as inventamos, «eleva-nos sem que o sintamos, e transporta-nos, digamos assim, como que de um país para outro sem que nos apercebamos, a não ser pelo prazer que nos causa»[1].
Ir de um país para outro que é, como quem diz, viajar de um mundo para outro, é algo que, para ambos, artista e observador, causa um prazer que, mesmo que contido num curto instante, nos faz experimentar, nas palavras de Charles Baudelaire (1821-1867), a infinitude do prazer – experiência por si só suficiente para justificar, ou tornar suportável, a condenação eterna: «Mais qu’importe l’éternité de la damnation a qui a trouvé dans une seconde l’infini de la jouissance?»[2].

A exposição, o pintor, o atelier e o mundo
A exposição de Paulo Damião organizada em duas partes – no Museu das Artes de Sintra (MUSA) e na Galeria Arte Periférica em Lisboa – torna pública a profunda transformação entretanto ocorrida no seu trabalho pictórico. Uma transformação que não é tanto na linguagem empregue e nos processos técnicos usados, mas que se apresenta, sobretudo, nos objetivos perseguidos, nos temas tratados e, acima de tudo, nos resultados alcançados. Mais do que nunca, trata-se de jogar o antiquíssimo jogo da ilusão fazendo da pintura, como tantos pintores antes de si, uma fábrica de possibilidades visuais e, como tal, de admiráveis incertezas; uma fábrica de mundos possíveis, no espaço e no tempo, que, na sua fascinante promessa e indeterminação, deixam o observador num estado não resolvido (porque, por definição, é irresolúvel) de suspensão. Suspensão no sentido de estar suspenso – como quem está espacialmente acima do chão – e suspenso no sentido de quem aguarda ou está pendente temporalmente de um resultado (ou certeza) que, neste caso, nunca chegará.  

É neste mundo de incerteza e de ficção que a pintura se torna uma prática assumida de construção de representações e o atelier a fábrica onde esses mundos possíveis são construídos. Já as imagens que lhes dão forma visual são dotadas desse mecanismo de elevação e de transporte do observador que, de algum modo, permitem a este (quase) replicar as viagens que o artista realiza de um país para outro sem nunca sair do interior do seu estúdio.
O atelier torna-se, assim, o mundo e confunde-se com ele (com todos os mundos possíveis) e o mundo transforma-se numa exuberante ficção, sonho ou visão do atelier do artista. As imagens criadas correspondem aos mundos que coexistem no seu interior, mundos que são vistos ou imaginados pelo pintor – em qualquer caso, que são sempre tornados visíveis por ele. Mundos incertos, já o escrevi, mundos prováveis ou improváveis, mas sempre claramente existentes nestas imagens – esses lugares onde cabem, ou se reúnem, todas as ficções.

Ficções e falos, paisagens e naturezas-mortas, trompe l’œil e vanitas
A expressão trompe l’œil designa um tipo específico de objetos e, tanto quanto sabemos, foi empregue pela primeira vez em 1800 pelo pintor Louis-Léopold Boilly (1761-1845), que assim intitulou uma das obras que apresentou no Salon desse ano. A pintura em causa representava gravuras, desenhos e papéis sobrepostos sobre uma superfície plana, cobertos por uma placa de vidro partido e enquadrados por uma moldura de madeira. Tudo isto pintado. A pintura, ridicularizada pela maioria dos críticos, causou sensação popular e, mais importante, passou a designar todo um género pictórico que até aí não tinha um nome consensual e que havia sido praticado abundantemente no século de ouro holandês.
Na pintura desaparecida de Boilly, as gravuras, os desenhos, os papéis, o vidro partido e a moldura, pintados de forma ilusionista sobre tela, recuavam ao género amplamente praticado nos Países Baixos no decorrer do século XVII, mas recuavam ainda mais: ao famoso cacho de uvas pendurado numa parede, representado numa outra pintura há muito desaparecida, atribuída ao artista grego Zêuxis (464 a.C.-398 a.C.). Por outras palavras, a pintura de Boilly procurava trazer de novo à nossa presença a mítica imagem de Zêuxis e, mais importante, evocar o poder que esta detinha de simular o real ao ponto de enganar, de forma quase perfeita, a nossa percepção. E que melhor demonstração desse poder – tal como foi descrita pelo romano Plínio, o Velho (c.23/24-79), na sua Historia Naturalis, publicada no ano de 77 da nossa era – senão o facto de até as moscas serem atraídas pelas uvas pintadas tal como eram atraídas por uvas verdadeiras?
Em rigor, um tromper l’œil é um objeto pertencente a uma classe específica e não um termo sinónimo de ilusão ou de pintura ilusionista. Nesse sentido, pintura ilusionista e pintura de trompe l’œil devem ser consideradas formas pictóricas diferentes que derivam de diferentes entendimentos e aplicações à pintura do conceito genérico de ilusão. Enquanto o conceito de ilusão e consequentemente de pintura ilusionista é, relativamente aos meios e processos empregues como aos fins a atingir, amplo e heterogéneo, o conceito de trompe l’œil, pelo contrário, é restrito. Restrito nas formas usadas e no modo como são visualmente construídas. Mas no caso da pintura de Paulo Damião, as fronteiras entre ilusão e trompe l’œil diluem-se e este emerge no seu trabalho mais como uma evocação do que como uma afirmação rigorosa, resultado de uma apropriação que, para cumprir os seus objetivos de dar forma aos mundos que povoam o interior do atelier, transforma cada pintura numa ficção em torno da mortalidade. Isto é, traz até nós, em moldes inteiramente contemporâneos, o conceito e a categoria pictórica também ela neerlandesa de vanitas: uma forma de natureza-morta destinada a chamar a nossa atenção para a fragilidade e a transitoriedade de tudo – a começar pela própria vida.
Deste modo, nestas pinturas de Paulo Damião, todas as paisagens são naturezas-mortas e todas as naturezas-mortas são paisagens; retratos, luzes e sombras; copos, pincéis, folhas de papel e pedaços de fita-cola, são ilusão e, acima de tudo, evocações projetadas em tela da presença e da materialidade dos corpos e, consequentemente, da sua mortalidade. Sejam projeções de luz e sombra convencionais: por exemplo, as sombras projetadas por folhas de papel cujos cantos se destacam ligeiramente da superfície onde surgem coladas; sejam projeções de luz e sombra cenográficas: por exemplo, as sombras que os instrumentos do pintor, sob um foco de luz colocado fora do espaço pictórico, projetam na parede do atelier e na tela onde ele pinta; sejam, sobretudo, as projeções de luz e sombra mais cinematográficas: por exemplo, aquelas onde a tela (e até o corpo do artista) parece iluminar-se, como um ecrã de cinema, por via de um velho e gasto projetor (intenso mas com pouca nitidez). Tudo é ficção, advertências acerca da mortalidade, tudo é ilusão. Ainda que cintilante.
Mesmo os rochedos ou menires, sólidos e grandiosos, confundem-se com falos, bibelots ou sex toys. Por mais poderosos que todos pareçam ser, uns e outros mantêm a sua identidade indeterminada. Mas apresentam-se inquestionavelmente como símbolos da vida, mergulhados que estão no espaço e, por isso, sujeitos à erosão do tempo. Objetos do quotidiano colocados e distribuídos por planos geometricamente impossíveis; paisagens e casas há muito desabitadas, lugares de ausência, marcadas pela sombra de troncos, ramos e outros enganos. O próprio pintor, tornado totem e, ao mesmo tempo, menir, surge como objeto exposto ao desejo, essa poderosa experiência humana, que misturando atração, impulso e sofreguidão, revela uma força frequentemente indomável, mas que é, afinal, uma das experiências humanas mais precárias e transitórias.

[1] Roger de Piles, Cours de Peinture par Principes. Paris: Jacques Estienne, 1708; p. 117.
[2] Charles Baudelaire, «Mauvais vitrier». In Le Spleen de Paris: Poèmes en Prose (Paris: Éditions de La Banderole, 1869).

 

Sobre o autor
n.1975
Açores, (Pilar-Bretanha, S. Miguel)

Licenciado em Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Vive e trabalha na região de Lisboa. Desde 2004 expõe regularmente o seu trabalho, predominantemente pintura e desenho. Encontra-se representado em múltiplas coleções públicas (como no Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, Assembleia Legislativa do Governo dos Açores, Museu Municipal de Coimbra) e particulares nacionais e internacionais. Conta com vinte participações em feiras de arte em Portugal e no estrangeiro, incluindo na ARCO Madrid, Pan Amsterdam, Vienna Fair, Art Cologne Fair, Just Lisboa, Art Madrid, Drawing Room em Lisboa e em Madrid.

Exposições Individuais (seleção):
2022 “AS IMAGENS DO MUNDO E OUTROS ENGANOS” MU.SA - Museu das Artes de Sintra I Galeria Municipal & Galeria Arte Periférica, Centro Cultural de Belém, Lisboa;
2021 “sim é sim, talvez, pode ser”, Galeria Arte Periférica, Centro Cultural de Belém, Lisboa. “O Lugar onde se é esperado”, Casa Varela – Centro de Experimentação Artística – Município de Pombal, em parceria com a Galeria Arte Periférica;
2020 “How to survive an Island”, Galeria Arte Periférica, Centro Cultural de Belém, Lisboa;
2018 “A Impressão dos Corpos”, Trema - Arte Contemporânea, Lisboa;
2015 “Interlúdio”, Trema - Arte Contemporânea, Lisboa;
2014 “A Luz Insubmissa II”, Centro Municipal da Cultura de Ponta Delgada, S. Miguel, Açores;
2013 “A Luz Insubmissa”, Trema - Arte Contemporânea, Lisboa;
2012 “A Sombra dos Álamos”, Galeria Movimento Arte Contemporânea, Lisboa. “Outono”, Galeria Paulo Nunes - Arte Contemporânea/ Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, Pavilhão Multiusos de Vila Franca de Xira. “A Sombra dos Álamos” – Oficinas Municipais de Aljustrel, parceria com a Galeria Movimento Arte Contemporânea, Lisboa;
2011 “Encontrei-te amanhã…”, Fundação Henrique Leote em parceria com a Galeria Paulo Nunes - Arte Contemporânea, Convento de São Paulo, Redondo;
2010 “A Revelação”, Galeria Arte Periférica, Centro Cultural de Belém, Lisboa;
2009 “Os Confidentes”, Galeria Arte Periférica, Centro Cultural de Belém, Lisboa;
2007 “Eu Amo (Reabilitação)”, Galeria Arte Periférica, Centro Cultural de Belém, Lisboa; “No Abismo Secreto do Peito”, Galeria Fonseca Macedo, Ponta Delgada, Açores;
2006 “Um lugar ao Lado do Coração”, Galeria Arte Periférica, Centro Cultural de Belém, Lisboa.
2005 “Amor Branco-de-Chumbo”, Galeria Arte Periférica, Centro Cultural de Belém, Lisboa.
 
Exposições Coletivas (seleção):
2022 Drawing Room Lisboa (Galeria Arte Periférica); Drawing Room Madrid (Galeria Arte Periférica); 2021 Drawing Room Lisboa e Drawing Room Madrid (Galeria Arte Periférica); 2020 Drawing Room Lisboa (Stand Galeria Arte Periférica); Arte de Bolso 2020 (Galeria Sete, Coimbra); 2018 JUSTLX Lisboa (Trema - Arte Contemporânea); 2017 JUSTMAD8, Madrid (Trema - Arte Contemporânea); 2016 JUSTMAD7, Madrid (Trema - Arte Contemporânea); 2015 JUSTMAD6, Madrid (Trema - Arte Contemporânea); Coletiva de artistas na Galeria Trema - Arte Contemporânea, Lisboa; 2014 “S4 adjacentes”, Sala do Veado, Museu Nacional de História Natural e da Ciência, Lisboa; 2013 “3 Artistas da Trema”, Galeria Municipal D. Dinis, Estremoz; 2012 Inauguração da Galeria CB Concept Art, Carcavelos. “Arquipélago”, Academia das Artes doa Açores, Ponta Delgada. MIAB 2012: Bienal de Arte Contemporânea da Madeira, Funchal; 2011 Colectiva do Natal MAC, Movimento Arte Contemporânea, Lisboa. Coletiva do 17º Aniversário MAC, Movimento Arte Contemporânea, Lisboa. Vienna Fair 11 – Feira Internacional de Viena, Stand Galeria Paulo Nunes - Arte Contemporânea, Viena. Art Madrid 11 – Feira Internacional de Madrid, Stand Galeria Paulo Nunes - Arte Contemporânea, Madrid; Art Fair Cologne 11, Stand Galeria Paulo Nunes - Arte Contemporânea, Colónia; 2010 Celeiro do Patriarcal da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, Galeria Paulo Nunes - Arte Contemporânea, Vila Franca de Xira. Homenagem ao Pintor Nadir Afonso, Galeria do Casino do Estoril, Estoril; 2009 Arte Lisboa 09 – FIL Lisboa (Stand Galeria Arte Periférica); 2008 Arte Lisboa 08 – FIL Lisboa (Stand Galeria Arte Periférica); 2007 Arte Lisboa 07 – FIL Lisboa (Stand Galeria Arte Periférica); Gravura Contemporânea, Faculdade de Belas Artes de Lisboa, Lisboa; 2006 Arte Lisboa 06 – FIL Lisboa (Stand Galeria Arte Periférica); Passagens, comissariada por Filomena Cunha, Casa do Gaiato, Santo Antão do Tojal, Loures; 2005 Arte Lisboa 05 – FIL Lisboa (Stand Galeria Arte Periférica). PanFair Amesterdam 05 – Feira Internacional de Arte, Amesterdão (Stand Galeria Hüsstege). XVII Salão de Primavera, Galeria de Arte Casino Estoril, Estoril. ARCO 05 – Feira Internacional de Madrid, Stand Galeria Arte Periférica, Madrid; 2004 Arte Lisboa 04 – FIL Lisboa (Stand Galeria Arte Periférica); Coletiva “Novos Artistas”, Galeria Arte Periférica, Centro Cultural de Belém, Lisboa. V Congresso das Academias do Mediterrâneo, Comenda Di Pré, Génova, Itália. XVI Salão de Primavera, Galeria de Arte Casino Estoril, Estoril. Galeria Gravura Cooperativa de Gravadores, Lisboa.