Vida e Obra de Ferreira de Castro
Retrato de Ferreira de Castro, da autoria da sua esposa, Elena Muriel, 1937
Casa de Salgueiros, onde nasceu Ferreira de Castro
Em Belém, grassava a crise da borracha. Castro passou pouco tempo em casa de um conterrâneo a quem havia sido recomendado, que – num episódio dickensiano – procurou livrar-se daquele encargo, arranjando-lhe trabalho num seringal inóspito. Viveu assim, entre 1911 e 1914 no seringal ironicamente chamado 'Paraíso', nas margens do rio Madeira, braço do Amazonas.
Embora trabalhasse como caixeiro num armazém, pois era alfabetizado, marcá-lo-ia fortemente a convivência com os seringueiros paraenses e cearenses, vítimas da adversidade do meio e da exploração dos coronéis proprietários das plantações. A par de pequenos textos destinados a jornais, ali redigiu o seu primeiro romance, Criminoso por Ambição, obra juvenil publicada a expensas próprias, já em Belém.
Ferreira de Castro em Belém do Pará, cerca de 1915
Em 1921 publicou, em edição de autor, Mas…, coletânea de ensaios e narrativas em que é patente a procura dum estilo original; porém, todos os livros desta fase, até O Voo nas Trevas (1927), serão por si considerados meras tentativas literárias e eliminadas da sua bibliografia. Enquanto jornalista, apesar de considerar esta atividade como mero recurso, pois o escopo era a literatura, foi paulatinamente firmando o seu nome em publicações de nomeada: A Batalha, ABC, Renovação, O Século, Civilização – revista de grande qualidade gráfica, que dirigiu.
Em 1926 será eleito presidente do Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa, pouco antes do golpe militar do 28 de Maio, que instituirá o Estado Novo. A sua reação contra a Censura leva ao encerramento do sindicato no ano seguinte.
Ferreira de Castro, fotografia de San-Payo, s.d.
1928 é o ano de Emigrantes, abrindo novos horizontes à literatura portuguesa. Castro assumiu-se como "biógrafo das personagens que não têm lugar no mundo", e Manuel da Bouça surge-nos como um arquétipo que se dilui na torrente migratória com destino às Américas.
Trata-se de um romance fundamental no percurso de Ferreira de Castro, iniciando uma nova fase da sua obra. Representa, também, na história da literatura, uma viragem dentro do romance social português, evoluindo do realismo naturalista ou regionalista para o que viria a ser designado por neo-realismo, assumido pela geração seguinte com contornos políticos e ideológicos mais rígidos e definidos.
Emigrantes, de Ferreira de Castro, Lisboa, Livraria Renascença, 1928. Capa: Stuart Carvalhais
A Selva, de Ferreira de Castro, Porto, Livraria Civilização, 1930. Capa: Bernardo Marques
Edição japonesa de A Selva, de Ferreira de Castro, Tóquio, Sayriusha C.º, 2001
Eternidade, de Ferreira de Castro, Lisboa, Guimarães Editores, 1933. Capa: Bernardo Marques
Terra Fria, Lisboa, Editorial «O Século», 1934. Capa: Jorge Barradas
Esta nova etapa da sua vida não conheceu um início auspicioso. A peça que lhe fora pedida por Robles Monteiro para o Teatro Nacional, intitulada Sim, Uma Dúvida Basta, foi censurada, sendo publicada apenas em 1994; o romance O Intervalo quedou-se na gaveta até 1974; um outro, intitulado Classe Única, não passou dos capítulos iniciais. Castro enveredou, então, pelas narrativas de viagem. Pequenos Mundos e Velhas Civilizações (1937-38) deveu-se à simpatia do escritor pelos "povos minúsculos, pelas repúblicas em miniatura, por todos os que vivem isolados no planeta".
Escrito no Estoril, aí conheceu a pintora espanhola Elena Muriel, com quem casou, em Paris, em 1938, e de quem teve uma filha, Elsa, nascida em 1945.Pequenos Mundos e Velhas Civilizações, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1937-1938. Capa: Roberto Nobre
A Volta ao Mundo, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1940-1944. Capa: Roberto Nobre
Ferreira de Castro junto à Esfinge, no Egipto, 1935
Ainda sob os efeitos da pressão censória, Ferreira de Castro escreveu um romance que considerou, injustamente, quase inócuo. Trata-se de A Tempestade (1940), trama urbano em torno do adultério, do preconceito e da condição da mulher. Numa entrevista ao Diário de Lisboa, em 1945, de grande repercussão nos meios literários e políticos, Castro referiu-se ao seu livro nestes termos: "”A Tempestade” dá bem a ideia da influência que a falta de liberdade de expressão exerce na literatura. Quem ler os meus outros romances mal me reconhecerá neste. Tudo quanto constitui a minha personalidade está, ali, forçado, ou melhor, desfigurado".
A Tempestade, de Ferreira de Castro, Lisboa, Guimarães Editores
Túmulo de Ferreira de Castro, Serra de Sintra
Para a edição comemorativa do 25º aniversário de A Selva (1955), foi endereçado convite a Candido Portinari (1903-1962), afim de ilustrar o livro. A admiração do grande pintor brasileiro pela obra do nosso romancista evidencia-se, não apenas pelo seu magnífico trabalho, como pela circunstância de ter suspendido o trabalho que tinha em mãos: os painéis sobre A Guerra e a Paz no edifício da ONU, em Nova Iorque.
A Selva, de Ferreira de Castro, ilustrada por Portinari
A arte sempre exerceu um intenso fascínio em Ferreira de Castro. À caminhada do ser humano, nas suas preocupações estéticas, mentais e vitais consagrou as páginas de As Maravilhas Artísticas do Mundo ou A Prodigiosa Aventura do Homem através da Arte (1959-1963), obra a que dedicou uma década, premiada pela Academia das Belas-Artes de Paris.
As Maravilhas Artísticas do Mundo, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1959-1963
Emigrantes, de Ferreira de Castro, Ilustrações de Júlio Pomar, Edição Comemorativa dos Cinquenta Anos de Vida Literária de Ferreira de Castro (1916-1966)
O Instinto Supremo, de Ferreira de Castro, Lisboa, Guimarães & C.ª, 1968. Capa: Artur Bual
Ferreira de Castro foi, durante décadas o escritor português mais traduzido, escritor dum país periférico e isolado, sem influência nem projeção internacional – assim era o Portugal do século XX, que normalmente se destacava pelas más razões: pobreza, estado autoritário e policial, colonialismo. Ser publicado na maior parte das línguas cultas europeias, em grandes editoras como a Macmillan, a Viking, a Grasset, a Aguilar, entre outras, foi um feito assinalável, abrindo caminho para outros escritores portugueses.
20. Reconhecimento internacional a que faltou o Prémio Nobel de Literatura, ao qual foi proposto em 1951 e em 1968, desta vez na companhia de Jorge Amado. Não obstante, ser-lhe-ia atribuído o Prémio Águia de Ouro de Festival do Livro de Nice, em 1970, por um júri muito relevante, na sua composição de escritores, presidido por Isaac Bashevis Singer, distinção à qual haviam sido proposto nomes de grande significado como Lawrence Durrell ou Konstantin Simonov.
Ferreira de Castro no seu gabinete de trabalho, 1953
Falecido em 29 de Junho de 1974, Ferreira de Castro repousa na Serra de Sintra, sob um banco talhado na rocha, numa vereda que conduz ao Castelo dos Mouros.
Tendo escrito aqui parte da sua obra, hospedando-se em especial no Hotel Netto, o escritor sentia-se particularmente bem neste cenário verdejante, tanto mais que a Natureza vegetal é um tópico importante nos seus livros, no seu estilo literário e dir-se-ia que indissociável da sua própria essência de homem e artista. Num texto de 1964, Castro escrevia:
"As paisagens nativas, as suas irmãs minhotas e tantas outras que me têm feito sonhar ao longo do nosso planeta, prendem-me mais profundamente à vida do que as raízes prendem as árvores à terra. Toda a minha existência de homem e de escritor está vinculada a esta paixão. Foi em convívio com a Natureza que os sentimentos de amor se sublimaram sempre em mim, foi em contacto com ela que elaborei a maioria das páginas que tenho escrito. As minhas demoradas estadas nesse pequeno mundo de beleza insigne que é Sintra, com tantas veredas dum intimismo lírico, tantos rincões secretos onde a poesia habita e tanta espiritualidade pairante, como se tudo propiciasse, às horas vespertinas, uma perfeita e voluptuosa fusão dos corpos e das almas, devem-se à irresistível fascinação que em mim exercem as grandes e verdes paisagens."
Ficar para toda a eternidade integrado de corpo e alma na Natureza que lhe inspirara tantas páginas, era uma ideia que acalentara desde cedo. Assim, em 1970, fez o único pedido às autoridades do seu país:
Ferreira de Castro, 1951